O nome "Campo de Concentração do Tarrafal" ecoa como sinônimo de sofrimento e opressão por décadas. Contudo, essa denominação nunca foi oficial. Nos documentos do Estado Novo, o local era chamado de "Campo de Trabalho de Chão Bom", um eufemismo criado para mascarar a realidade da reclusão política sob o pretexto de "disciplina laboral". A palavra "trabalho" servia à retórica moralista do regime, que defendia que o trabalho regenerava e redimia o "inimigo da pátria". Na prática, era um instrumento de tortura e aniquilamento físico: o calor sufocante, a malária, a fome e a solidão transformavam o campo num inferno tropical. A omissão deliberada do termo "concentração" – especialmente após a Segunda Guerra Mundial – visava manter uma aparência de decência diplomática perante o mundo. Desmontar essa falácia é crucial para entender como o poder manipula a linguagem para legitimar a violência.
O Campo de Trabalho de Chão Bom passou por três períodos de funcionamento, que refletem as diversas facetas do autoritarismo português e pós-colonial.
O primeiro período (1936–1954) viu o internamento de opositores políticos portugueses – comunistas, sindicalistas, republicanos – exilados por ordem de Salazar. Dezenas de prisioneiros morreram ali, incluindo Bento Gonçalves, secretário-geral do Partido Comunista Português. Era conhecido como o "Cemitério dos Vivos", um nome que traduzia sua lógica perversa: matar lentamente, longe da vista pública                                
                                                                    
                                    
                                        
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O segundo período (1962–1974) marcou a reabertura do campo para receber militantes dos movimentos de libertação das colônias africanas – principalmente do PAIGC (Guiné e Cabo Verde), mas também do MPLA (Angola) e da FRELIMO (Moçambique). O Tarrafal tornou-se um braço penal da guerra colonial, símbolo da recusa do regime em aceitar o direito à autodeterminação dos povos africanos. Entre os prisioneiros estavam figuras que, após a independência, assumiriam cargos políticos importantes em seus países. O campo passou a ser conhecido como "Campo de Chão Bom do Tarrafal de Santiago", numa tentativa de apagar o passado de 1936, mas a repressão se manteve.
O terceiro período (1974–1975), logo após o 25 de Abril, é o mais paradoxal e doloroso: o campo foi novamente usado, ainda sob administração portuguesa e depois cabo-verdiana, para deter compatriotas acusados de se oporem ao processo político em curso. Entre os presos estavam professores, comerciantes e cidadãos comuns, muitos sem acusação formal.
O Presídio do Tarrafal, que recebeu, no mesmo espaço, presos de delito comum naturais do arquipélago, bem como mais de 50 homens por motivos políticos já depois do 25 de Abril e antes da independência (1974–1975), representa um dos símbolos mais sombrios da repressão e da violação dos direitos humanos em Cabo Verde e no mundo lusófono. Ao longo de suas três fases de funcionamento – de 1936 a 1954, de 1962 a 1974 e de 1974 a 1975 – o Tarrafal foi, sucessivamente, prisão de opositores políticos portugueses, de nacionalistas africanos e, paradoxalmente, de cabo-verdianos detidos no período que antecedeu a independência.
É sobre este último período que se debruça o livro de Sandra Inês Cruz, Tarrafal, 1975 – O Campo do Silêncio (Edições Afrontamento, colecção Memoirs). Com rigor jornalístico e sensibilidade de investigadora, a autora reconstrói as histórias de homens presos numa prisão que já deveria estar fechada, confrontando um país com sua própria sombra: a liberdade não chegou a todos ao mesmo tempo.
Nas ilhas, a revolução chegou com atraso e contradições; trouxe esperança, mas também medo. Os ecos do poder mudaram de sotaque, mas a lógica da obediência e da exclusão sobreviveu. Mais do que denúncia, o livro é um ato de escuta e de restituição moral, resgatando memórias familiares, cartas e fotografias que revelam um Cabo Verde dividido entre o sonho e a ferida, e questionando o silêncio oficial que perdurou meio século.
No artigo O 25 de Abril que nunca aconteceu, publicado no Expresso das Ilhas, recordou-se esse hiato entre o entusiasmo da revolução e sua concretização efetiva em Cabo Verde. Evocando Teixeira de Sousa em Entre Duas Bandeiras, foi sublinhado que a independência deveria ter sido um ato de reconciliação, não de exclusão.
A história do Tarrafal – ou de Chão Bom, para usar o nome correto – é a história das metamorfoses da repressão: mudam os regimes e as bandeiras, mas a lógica do medo persiste. Lembrar é impedir que o poder se esconda sob o manto da virtude.
O projeto de musealização do Campo de Trabalho de Chão Bom, atualmente em curso, visa transformar aquele espaço em um Museu da Resistência e da Liberdade. A credibilidade do projeto dependerá, no entanto, da coragem de assumir as três memórias que o habitam – a dos antifascistas portugueses, a dos nacionalistas africanos e a dos cabo-verdianos do processo político da independência.
Não se trata apenas de preservar edifícios ou objetos, mas de preservar consciências. Um museu que omite é tão perigoso quanto um campo que silencia. A dimensão pedagógica deste projeto é decisiva. Transformar o Tarrafal num espaço vivo de educação cívica e histórica permitirá às novas gerações compreender que a liberdade não é um estado, mas um processo. Nas escolas, nos museus e nas praças públicas, a história de Chão Bom pode e deve ser contada como advertência contra o autoritarismo e o esquecimento. Um país que ensina sua dor é um país que aprende sua dignidade.
É necessário, portanto, fazer do Tarrafal um lugar de verdade e de reconciliação, onde as novas gerações aprendam que a liberdade é uma construção permanente, feita de vigilância, dúvida e empatia. Preservar o Tarrafal – ou, com mais propriedade, o Campo de Trabalho de Chão Bom – é preservar a verdade, a memória e a humanidade. Enquanto houver nomes por dizer, rostos por lembrar e silêncios por reparar, a liberdade continuará sendo uma obra inacabada. E talvez seja esse o verdadeiro sentido da palavra resistência: não desistir de lembrar, mesmo quando a lembrança incomoda. Porque resistir é, antes de mais, não desistir de lembrar.
Sandra Inês Cruz é jornalista e investigadora. Licenciada em Comunicação Social, trabalhou na RTP e na TVI, tendo realizado reportagens e documentários em vários países africanos. É doutorada pela Universidade de Coimbra, onde defendeu a tese “Tarrafal: discursos cruzados na genealogia do Campo de Concentração. A Resistência ao Esquecimento” (2025). Em Tarrafal, 1975 – O Campo do Silêncio (Edições Afrontamento), reconstrói o quotidiano dos últimos presos políticos cabo-verdianos e analisa o modo como o Tarrafal – símbolo do fascismo português – foi reutilizado após o 25 de Abril, num tempo em que a liberdade ainda não era para todos. Define a sua obra como “um gesto de escuta e restituição”, onde o jornalismo se cruza com a história e a ética, devolvendo humanidade ao que a história institucional procurou silenciar. Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.                                        
                                        
                                                                                    
                                                
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                                                    factual.
                                                    
Veja o artigo original aqui.
                                                                                            
 
                                                                             
                                                            
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