Enquanto os líderes mundiais se preparam para a COP30 em Belém, uma infraestrutura discreta, mas crescente, se espalha pelos territórios do Sul Global: os data centers de inteligência artificial. Por trás da promessa de "revolução tecnológica" e "investimentos bilionários", esconde-se uma nova forma de dependência tecnológica, agora impulsionada por algoritmos e fibra óptica que aprofundam o subdesenvolvimento. É crucial que a conferência climática de 2025 aborde essa questão: a expansão desenfreada de data centers de IA representa uma potencial catástrofe ambiental e uma reconfiguração das relações de dependência entre o centro e a periferia do sistema global.
A corrida pela supremacia em inteligência artificial encontrou um limite físico: a energia. O Colossus, o supercomputador da xAI de Elon Musk em Memphis, Tennessee, ilustra a magnitude do problema. Iniciado em 2024 com 150 megawatts de capacidade, o projeto planeja expandir para 1,2 gigawatts – o suficiente para consumir 40% da demanda energética de pico de Memphis. Especialistas indicam que um único data center de grande porte pode consumir tanta eletricidade quanto uma cidade de tamanho médio. Os números do impacto hídrico são igualmente alarmantes. Segundo o Washington Post, para gerar apenas 100 palavras, o ChatGPT utiliza cerca de 519 ml de água. Com o ChatGPT recebendo 1 bilhão de mensagens por dia, isso representa um consumo de 518 milhões de litros de água diariamente. Um data
center comum pode usar de 3 a 5 milhões de litros de água por dia, equivalente ao consumo diário de uma cidade de 30 mil habitantes. A dependência digital não busca especiarias, terras ou metais preciosos, mas sim dados, comportamentos e trabalho intelectual precarizado. Esse gargalo energético impõe uma escolha civilizacional. Diante da impossibilidade de sustentar o crescimento exponencial da IA com a infraestrutura computacional atual, duas alternativas se apresentam: uma revolução científica na própria base da computação ou a estratégia de transferir custos ambientais e sociais para as periferias do sistema.
A computação ternária, que utiliza trits (dígitos com três estados: -1, 0, +1) em vez dos bits binários tradicionais (0 e 1), oferece vantagens teóricas significativas. Um computador ternário precisaria de 18 dígitos para alcançar uma capacidade que exigiria 29 bits em um sistema binário. Pesquisas modernas apontam que lógicas plurivalentes podem reduzir a complexidade de interconexões, consumo de energia e área de chips. Estudos recentes demonstram que chips de memória com computação ternária podem armazenar e processar até quatro estados (0, 1, 2 ou 3), eliminando transferências de dados entre memória e processador – o que pode multiplicar a velocidade de um computador típico por dois ou mais. A tecnologia existe, com décadas de pesquisa acumulada desde o computador soviético dos anos 1950, e o potencial de redução no consumo energético é real. No entanto, o investimento maciço em métodos de fabricantes de chips binários subjugará qualquer pequena vantagem teórica de outras bases. A tecnologia binária se tornou tão estabelecida que mudá-la exigiria transformar toda a indústria de semicondutores. Em outras palavras, a solução científica é a mais cara, a mais complexa, e exigiria que as grandes corporações tecnológicas renunciassem a décadas de infraestrutura estabelecida. Diante da escolha entre revolução científica cara e manutenção dos lucros imediatos, o capital global escolheu a transferência de custos para as economias menos desenvolvidas.
Nesse contexto brasileiro, grandes empresas como Amazon, Google e TikTok operam data centers frequentemente amparados em incentivos públicos, consumindo recursos naturais críticos como água e energia. Além disso, mantêm o controle transnacional sobre dados, sem contrapartidas significativas ao país. As políticas de incentivo fiscal para atração de data centers devem levantar questões sobre a necessidade de contrapartidas efetivas de transferência tecnológica e garantias contra a transformação do país em um mero receptáculo de infraestrutura digital. Assim como nas zonas francas industriais de décadas passadas, observa-se que a isenção fiscal, a territorialidade flexível e a baixa exigência de integração ao tecido produtivo nacional não foram suficientes para superar a condição de subdesenvolvimento. Contrário à geografia da espoliação, as regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas não desejam se tornar zonas de sacrifício adicional na sustentação de uma infraestrutura digital oriunda do Norte Global. Enquanto empresas podem receber incentivos e acesso privilegiado a recursos naturais críticos, as comunidades locais convivem com racionamentos e insegurança hídrica crônica. A dependência digital não busca especiarias, terras ou metais preciosos, mas sim dados, comportamentos e trabalho intelectual precarizado. Países do Sul Global têm uma oportunidade crucial para o reposicionamento na Divisão Internacional do Trabalho da Era Digital, distanciando-se do risco de se transformarem em laboratórios humanos de sistemas concentradores de riqueza e poder provenientes dos centros tecnológicos dos Estados Unidos, Europa e China.
A concentração da infraestrutura de nuvem em poucas mãos – Amazon, Microsoft e Google controlam juntas mais de dois terços da nuvem mundial – materializa uma forma contemporânea do subdesenvolvimento estrutural e a dependência de dados. Essa configuração reproduz as antigas relações centro-periferia da Era Industrial teorizadas por pensadores como Raúl Prebisch e Celso Furtado, onde os países centrais detêm o controle sobre as tecnologias estratégicas e os fluxos de valor, enquanto as economias periféricas fornecem recursos e infraestrutura sem reter capacidade decisória sobre os processos produtivos. Atualmente, os Estados Unidos detêm 39% dos maiores data centers do mundo, enquanto a China concentra outros 10%. Isso significa que metade da capacidade mundial está nas duas grandes potências. Os data centers instalados no Sul operam como enclaves territoriais, conectados mais diretamente a redes empresariais globais do que às necessidades da população local. A promessa de “desenvolvimento tecnológico” mascara a realidade: o projeto Colossus em Memphis prometeu 300 empregos, mas a realidade é que data centers de IA precisam de poucos trabalhadores em espaços muito grandes. O padrão se repete globalmente – empregos escassos, impacto ambiental massivo, nenhuma transferência real de tecnologia ou soberania sobre os dados que trafegam pelos cabos. Essa dependência estrutural se manifesta na dominação da arquitetura digital por corporações estrangeiras que minam o desenvolvimento local, dominam o mercado e extraem receita das economias periféricas, obtendo poder principalmente através do controle sobre a infraestrutura digital. É uma relação assimétrica onde os centros acumulam capacidade tecnológica e as periferias fornecem recursos, trabalho e dados sem contrapartida equivalente em autonomia ou desenvolvimento.
O projeto Colossus merece atenção especial nos debates da COP30 porque representa o futuro que as Big Techs planejam para o Sul Global. O projeto chegou a Memphis sem consultas públicas, sem estudos de impacto ambiental adequados, com autoridades locais assinando acordos de confidencialidade. Instalou 33 turbinas a gás que podem produzir até 2.000 toneladas de poluição de óxido de nitrogênio por ano. Além dos 1,2 gigawatts de energia, o Colossus necessita até 1 milhão de galões de água por dia para refrigeração. Atingir 1,2 GW exigiria de 4 a 6 novas subestações e grandes atualizações na transmissão, potencialmente uma usina de energia dedicada. E isso é apenas um data center, em uma cidade americana com infraestrutura robusta. Imagine o impacto quando essa lógica se replica no semiárido brasileiro, na África subsaariana, no subcontinente indiano. O risco de câncer por fontes industriais no sudoeste de Memphis já é o mais alto do país. Residentes de Boxtown, uma comunidade majoritariamente negra e economicamente desfavorecida que há muito suporta poluição industrial, enfrentam agora outra ameaça à sua saúde. É a mesma lógica do racismo ambiental, agora pintada de “inovação tecnológica”. A COP30 em Belém representa uma oportunidade única porque ocorre no coração da Amazônia, região que simboliza tanto a urgência climática quanto a resistência histórica a padrões de dependência. Pela primeira vez, uma COP discutirá a Amazônia dentro da Amazônia, com a participação direta de povos indígenas e comunidades ribeirinhas. É o momento de expor como a expansão de data centers pode reproduzir padrões históricos de expropriação e devastação ambiental. Os números globais são alarmantes: data centers já consomem 1% da energia global, e o setor pode crescer exponencialmente. Um data center de 1 MW com métodos tradicionais de resfriamento usa cerca de 25 milhões de litros de água por ano. À medida que a demanda por IA generativa explode, esses números se multiplicam.
Existem, portanto, duas alternativas diante do gargalo energético da inteligência artificial. A primeira é a aposta científica: investir na computação ternária, redesenhar a arquitetura dos chips, transformar a base material da computação para torná-la mais eficiente. É uma solução que exigiria cooperação internacional, investimento público massivo em pesquisa, compartilhamento de tecnologia, e disposição das corporações para abrir mão de lucros de curto prazo em favor da sustentabilidade planetária. A segunda alternativa reproduz as dinâmicas centro-periferia analisadas pela teoria da dependência: transferir os custos ambientais para as economias periféricas, aproveitar as “vantagens comparativas” de países com energia barata, regulação frouxa e populações politicamente vulneráveis. Construir os data centers longe dos olhos e pulmões das elites dos centros globais, mas manter o controle absoluto sobre os fluxos de dados, sobre a inteligência artificial que será produzida, sobre os lucros que serão extraídos. E sabemos, pela história das relações centro-periferia desde o século XVI, qual caminho os atores que se importam apenas em acumular sempre escolhem. Não é o caminho da ciência, da cooperação ou da sustentabilidade. É o caminho da expropriação. Nos séculos passados, ofereciam espelhos e velhas armas de fogo em troca de ouro e trabalho escravizado. Hoje oferecem data centers, prometem “desenvolvimento tecnológico” e “empregos”, mas entregam devastação ambiental, dependência estrutural e nenhuma soberania real sobre os dados ou a tecnologia. A COP30 em Belém deve ser o espaço onde essa nova configuração de dependência seja explicitada e analisada criticamente. Não podemos permitir que os mesmos países que historicamente causaram a crise climática agora exportem suas infraestruturas mais destrutivas para as regiões mais vulneráveis do planeta, sob o verniz da “revolução digital”. A mudança do padrão binário para o ternário na computação é a aposta científica mais promissora, mas é também a mais cara. O capitalismo global já sinalizou sua escolha: consolidar uma nova forma de dependência digital, reproduzindo em novas bases o subdesenvolvimento. Em vez de espelhos e velhas armas de fogo, oferecem às economias periféricas data centers que em nada asseguram qualquer nível de soberania digital, mas garantem o consumo predatório de água e energia, a poluição atmosférica, e a perpetuação da dependência tecnológica. A COP30 deveria considerar esta questão, cumprindo a sua missão fundamental de proteger o planeta e garantir justiça climática. A discussão sobre data centers não é periférica – ela é central para entender como o capitalismo digital contemporâneo reproduz e aprofunda as relações assimétricas entre centro e periferia que estão na raiz da crise climática. Belém, como porta de entrada da Amazônia, precisa ser também a porta de saída para um novo modelo de desenvolvimento que não nos condena à devastação.
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Esta matéria foi adaptada e reescrita pela equipe editorial do TudoAquiUSA
com base em reportagem publicada em
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