Um relatório legal não comprova que a ordem de prisão contra uma mulher que reside nos Estados Unidos foi ilegal. A alegação de que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ignorou os procedimentos legais de cooperação no caso de Flávia Cordeiro Magalhães não se sustenta.
Não existem evidências de que o ministro do STF, Alexandre de Moraes, tenha desrespeitado os trâmites formais de cooperação jurídica e penal internacional ao solicitar a prisão de uma brasileira que vive nos Estados Unidos. Flávia Cordeiro Magalhães afirma possuir cidadania americana e residir nos EUA por mais de duas décadas. Seu advogado, Paulo Faria, alegou que agentes da Polícia Federal (PF) foram ao país para vigiá-la e prendê-la sem o conhecimento das autoridades locais, o que seria ilegal. O projeto Comprova entrou em contato com Faria, mas ele não forneceu provas de suas declarações.
De acordo com professores de Direito Internacional e Penal da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), consultados pelo Comprova, os elementos apresentados pelo advogado – caso realmente constem no processo – sugerem o oposto do que ele afirma: que os procedimentos legais de cooperação internacional foram seguidos por Moraes (detalhes abaixo).
Flávia passou a ser investigada pela PF após publicar em sua conta no X, em 15 de junho de 2023, que Moraes teria visitado o chefe do Primeiro Comando da Capital (PCC), Marcola, na prisão
. “O narcotráfico (sic) está dentro do STF”, escreveu na postagem. O ministro nunca visitou o criminoso, conforme verificado pelo site Aos Fatos.
Em 8 de fevereiro de 2024, Alexandre de Moraes determinou a prisão preventiva de Flávia pelos crimes de associação criminosa e incitação ao crime. “A investigada persiste em descumprir decisões previamente proferidas por mim, continuando a divulgar notícias fraudulentas nas redes sociais”, justificou Moraes. No mandado, também aparece o nome Flávia Magalhães Soares, que consta na cidadania americana de Flávia, conforme ela afirma em um vídeo nas redes sociais.
A alegação de que Moraes ordenou que a PF fosse aos EUA vigiar e prender Flávia foi feita por Paulo Faria nas redes sociais. A postagem alcançou mais de 700 mil visualizações e 4 mil compartilhamentos no X. O relato dele originou uma série de outros posts e foi repercutido por Flávia em entrevistas. Em pelo menos uma delas, Flávia afirma que a ordem de Moraes não era para a PF prendê-la nos EUA, mas sim sequestrá-la.
Segundo Faria, Flávia foi incluída no chamado inquérito das fake news, que tramita sob sigilo no STF e tem Moraes como relator. O advogado diz ter tido acesso recente aos autos, onde consta, segundo ele, prova de que o ministro do STF determinou a ordem ilegal. O Comprova solicitou a Faria acesso a esses documentos, mas o advogado se recusou a compartilhá-los.
O Comprova procurou o STF, que não comentou, sob a justificativa de que “os processos citados na postagem tramitam em sigilo”. A PF não respondeu.
O criador do conteúdo investigado pelo Comprova é Paulo Faria, advogado de Flávia e também do ex-deputado federal Daniel Silveira, que foi condenado pelo STF, em 2022, a oito anos e nove meses de prisão pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo. Atualmente, Silveira cumpre pena em regime aberto.
Flávia Magalhães se descreve em seu perfil no X, no qual possui mais de 78 mil seguidores, como pernambucana, cidadã americana, republicana e conservadora. E declara lutar pela liberdade de expressão de todos. Ela faz parte do movimento evangélico Yes Brazil USA, que já organizou eventos com o ex-presidente Jair Bolsonaro em Orlando, nos EUA, como uma motociata em junho de 2022 e uma palestra em fevereiro de 2023. Na ocasião, Bolsonaro fez seu primeiro discurso como ex-presidente e incentivou seus apoiadores a questionarem o resultado das urnas.
Recentemente, o Comprova demonstrou que era enganosa uma postagem de Flávia que alegava que correntistas corriam o risco de perder dinheiro em caso de sanção dos EUA contra a instituição.
O post insinua a existência de uma ação coordenada e ilegal de autoridades brasileiras nos Estados Unidos e cita documentos para dar uma aparência de autenticidade ao que afirma, mas sem apresentá-los. O tom de indignação e sensação de injustiça constituem um forte apelo emocional, capaz de mobilizar internautas contra uma figura específica, no caso, Alexandre de Moraes. A estratégia pode reduzir o senso crítico e favorecer o compartilhamento impulsivo. O tom de descoberta de algo que Moraes supostamente buscava esconder pode levar as pessoas a acreditarem no relato.
O Comprova consultou o Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e encontrou apenas o mandado de prisão preventiva expedido por Moraes contra Flávia em 8 de fevereiro de 2024. O mandado é válido até 2030.
O advogado de Flávia afirma que o ministro teria decretado a prisão dela “na calada da noite” do dia 30 de dezembro de 2023, mas não há registro disso no banco do CNJ.
Em contato com o Comprova, o advogado afirmou que o mandado de prisão teria sido encaminhado ao Oficialato da Polícia Federal em Miami, um posto da corporação brasileira que atua junto ao Immigration and Customs Enforcement (ICE) – o órgão americano responsável pelo controle de imigração e alfândega.
Segundo Faria, o mandado teria sido enviado por um delegado responsável pelo setor de Coordenação-Geral de Cooperação Policial Internacional (CGCPOL-DCEPF). O ofício também teria sido enviado à Embaixada dos EUA em Brasília.
O Comprova não conseguiu confirmar essas informações nem com a PF, nem com o ICE, nem com a Embaixada. De acordo com Faria, os documentos constam nos autos do processo sigiloso contra Flávia, ao qual a reportagem não teve acesso.
No relato ao Comprova, o advogado conclui que, se houve encaminhamento da ordem de prisão a um agente da PF em Miami, é para que a ordem seja cumprida. Caso contrário, o agente estaria cometendo o crime de prevaricação. É assim que Faria sustenta a afirmação de que o STF, na pessoa de Moraes, deu sim ordem para que a PF prendesse Flávia em solo americano.
Mas os professores de Direito consultados pelo Comprova afirmam que a conclusão não faz sentido e não caberia falar em crime de prevaricação neste caso (entenda abaixo).
Sobre a alegação de que a PF “vigiou” Flávia nos Estados Unidos, o advogado explica que se baseia em declarações dela própria. Flávia teria ouvido de pessoas que estavam em uma manifestação política em Fort Lauderdale, na Flórida, em novembro de 2024, que a PF estaria no local para vigiá-la.
Faria afirmou que a pessoa que vigiava Flávia naquela ocasião foi identificada. “Tomaremos as medidas cabíveis em Miami, e repassando as informações às autoridades americanas, inclusive fotos e nome”, afirmou.
O Comprova consultou o professor de Direito Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rodrigo de Souza Costa, a professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Helena Lobo da Costa e a doutora em Direito Internacional Cynthia Soares Carneiro, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.
Todos explicaram que a PF e o STF podem sim investigar e processar uma pessoa que vive no exterior, seja ela estrangeira ou naturalizada estrangeira. Mas desde que tenha cometido crime no Brasil ou com efeitos no país.
Caso seja expedido um mandado de prisão, os professores afirmaram que o procedimento a ser seguido é o de cooperação penal internacional via pedido de extradição ao país em que o acusado se encontre – pedido este que pode ou não ser deferido.
Da mesma forma, explicam, é necessária autorização do Estado estrangeiro para que agentes brasileiros possam realizar investigações no exterior.
Na avaliação dos professores consultados, os elementos informados pelo advogado Paulo Faria levam a crer que os trâmites legais de cooperação internacional foram seguidos.
“Ele está relatando os trâmites de um pedido de extradição”, disse Cynthia Carneiro. “A comunicação que é relatada pelo advogado é entre as instituições que compõem a Interpol. Não tem nada de abusivo ou ilegal”.
Segundo a professora, a Coordenação-Geral de Cooperação Policial Internacional (CGCPOL-DCEPF) é o órgão da PF que administra a cooperação jurídica internacional e integra a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol).
No organograma da PF, consta que o setor é vinculado à Diretoria de Cooperação Internacional (página 26 do PDF).
O ICE é a polícia migratória americana. O órgão consta vinculado ao Oficialato da PF em Miami no site da organização brasileira. No site do ICE, aparece notícia de colaboração entre o órgão e a PF.
A Embaixada dos EUA em Brasília, também citada pelo advogado como tendo recebido o mandado de prisão contra Flávia, pode ter participação necessária em pedidos de extradição, de acordo com Cynthia.
“Como o pedido de extradição pode demandar acordos entre os Estados, é necessária a participação da Embaixada nesta modalidade de cooperação jurídica internacional, pois só o embaixador pode assinar acordos internacionais”, explicou a especialista em Direito Internacional.
Rodrigo Costa acrescenta: “Se o trâmite se dá a partir do delegado responsável pela área de cooperação policial internacional, isso é um indício de que, se há alguma ação sendo feita, ela está sendo (feita) a partir de trâmite junto às autoridades americanas”.
Helena Lobo vai no mesmo sentido. “Não me parece que um policial brasileiro pegou o mandado embaixo do braço para tentar prendê-la nos Estados Unidos. As informações são de comunicação entre autoridades ligadas à cooperação internacional”.
Sobre crime de prevaricação levantado por Faria caso um agente da PF não cumprisse uma suposta ordem ilegal de Moraes, Rodrigo Costa diz que a alegação não faz sentido: “Ordens ilegais não devem ser cumpridas, não há que se falar em prevaricação”.
O Comprova analisou postagens nas redes sociais e consultou o advogado Paulo Faria. Além de buscar o STF e a PF, a reportagem também buscou a Embaixada dos Estados Unidos, que pediu para que as questões fossem remetidas às autoridades brasileiras. A Procuradoria-Geral da República (PGR) respondeu que o Ministério Público Federal (MPF) não comenta processos sob sigilo. O Ministério da Justiça, também procurado, disse que “não se manifesta em relação a casos concretos e individualizados, pois correm sob sigilo de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados”. Já o ICE não respondeu.
O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas, eleições e golpes virtuais e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Sobre o caso de Flávia Magalhães, o Comprova mostrou no ano passado que Alexandre de Moraes não cometeu crime ao determinar a prisão dela. Não havia notas nas postagens no X até o fechamento desta matéria.
📝 Sobre este conteúdo
Esta matéria foi adaptada e reescrita pela equipe editorial do TudoAquiUSA
com base em reportagem publicada em
Odia
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