Por anos, muitas pessoas convivem com um incômodo difícil de explicar: uma espécie de ruído mental constante, uma “voz” interna que insiste em falar sobre comida, mesmo quando não há fome. Atualmente, esse fenômeno é chamado de food noise (ruído alimentar) e está no centro de uma mudança profunda na forma como a obesidade é compreendida.
A endocrinologista Marina Karam, que acompanha pacientes com obesidade e comportamentos alimentares desregulados, explica que o termo descreve o pensamento intrusivo persistente em comida, um fluxo contínuo que acontece fora da vontade consciente. É como se o cérebro estivesse sempre sintonizado em comida. Mesmo sem fome, a pessoa pensa na próxima refeição, imagina o que pode beliscar, cria cenários sobre o que comer mais tarde. Esse pensamento ocupa um espaço mental enorme e atrapalha muito a vida.
O ponto-chave é entender que obesidade é uma doença, e o food noise é um de seus sintomas. Assim como a dor é sintoma de inflamação, o pensamento intrusivo em comida é sintoma de uma desregulação metabólica e neuro-hormonal. O problema não é querer comer, mas o pensamento que vem independente da fome. A pessoa pode ter acabado de se alimentar e, ainda assim, sente a mente voltando sempre para comida. É cansativo, desgastante e interfere no trabalho, no lazer, na atenção.
A especialista afirma que esse tipo de pensamento compulsivo leva ao ganho de peso, mas também algo menos visível: uma perda significativa
de qualidade de vida. A pessoa não tem sossego mental.
A endocrinologista descreve situações comuns que se repetem entre os pacientes: pensar no almoço enquanto ainda toma o café da manhã, ir trabalhar e, no meio de uma tarefa, imaginar passar na padaria a caminho de casa, lembrar que tem leite condensado e cogitar fazer um brigadeiro, fantasiar sabores sem motivo e sentir urgência em comer, mesmo sem fome fisiológica. Esses pensamentos não são uma escolha: eles simplesmente invadem.
O termo food noise só ganhou força após a popularização dos agonistas de GLP-1, como Ozempic, Wegovy e Mounjaro. Esses medicamentos, inicialmente desenvolvidos para diabetes, passaram a ser amplamente usados para controle de peso. E foi aí que algo inesperado aconteceu. Os pacientes começaram a relatar que não tinham mais o pensamento contínuo em comida, o que acendeu um alerta: aquilo que parecia apenas “falta de foco” ou “compulsão” talvez fosse um fenômeno neurológico real, e, possivelmente, tratável.
Para explicar o fenômeno aos pacientes, Marina Karam usa uma imagem simples e muito precisa: “O food noise é como uma rádio do cérebro sempre ligada em comida. Pedindo, chamando, ocupando espaço. E esse espaço deveria estar disponível para outras coisas.” É justamente esse roubo de espaço mental que faz o fenômeno ser tão prejudicial. Ele interfere na concentração, na saúde emocional, na produtividade e até na vida social.
Especialistas de outros países também passaram a estudar o fenômeno. Pesquisas apontam que o food noise pode estar ligado a: exposição prolongada à cultura dietante, restrições alimentares rígidas, culpa e moralização da comida e respostas do cérebro ao estresse e à privação. Os agonistas de GLP-1 agem de duas maneiras: reduzem o apetite fisiológico e diminuem o comer por recompensa, reduzindo a anticipação prazerosa ligada à comida. É por isso que, ao usar o medicamento, muitas pessoas relatam que o cheiro de fast-food, a visão de doces ou a ideia de comer algo indulgente deixam de provocar aquele desejo mental irresistível.
Quando o uso é interrompido, o ruído volta. E, junto com ele, muitas vezes retorna o peso. Por isso, especialistas defendem que o período de silêncio mental proporcionado pelas “canetas” seja usado para construir novos hábitos, padrões alimentares e autonomia emocional.
Estratégias comprovadas incluem: refeições regulares e completas (carboidrato + proteína + gordura), planejamento semanal de comidas, evitar extremos de restrição, não rotular alimentos como “bons” ou “ruins”, trabalhar a relação emocional com comida, reduzir estresse e praticar pausas conscientes para entender o que o corpo está pedindo.
A endocrinologista Marina Karam reforça que reconhecer o food noise como um sintoma, e não como falha pessoal, traz alívio e abre espaço para tratamento. A pessoa não está pensando em comida porque quer. É o cérebro fazendo barulho. Quando entendemos isso, conseguimos ajudar com ciência, cuidado e estratégia. O objetivo não é silenciar a mente por completo, mas permitir que ela volte a ter espaço para o que realmente importa, e que a comida retome seu lugar natural na vida: nutrição, prazer, convivência — não obsessão.
📝 Sobre este conteúdo
Esta matéria foi adaptada e reescrita pela equipe editorial do TudoAquiUSA
com base em reportagem publicada em
Metropoles
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