No coração da Amazônia brasileira, a expansão da soja não apenas transforma paisagens, mas também sufoca as comunidades que as habitam. O uso intensivo de herbicidas em plantações de soja, especialmente o glifosato, tem perturbado profundamente as dinâmicas que sustentam a vida nas comunidades amazônicas e sua relação com a terra. Essas descobertas são resultado de um estudo etnográfico recente baseado em imersão de longo prazo na vida cotidiana e entrevistas aprofundadas com moradores do Baixo Tapajós, no Pará. Os resultados foram publicados em setembro passado na revista Environment and Planning E: Nature and Space.
Através das narrativas críticas da comunidade, foi possível expor como os impactos respiratórios e as experiências de sufocamento entre essa população levam a um processo lento e prolongado de expulsão. Esse mecanismo atua simultaneamente sobre corpos, ecossistemas e a própria possibilidade de permanecer em seus territórios. A situação foi descrita de forma contundente por Beto, trabalhador rural de uma comunidade ribeirinha ao longo da rodovia Curuá-Una, no Pará. “Está sufocando!”, disse ele, referindo-se às razões por trás dos sucessivos deslocamentos forçados que tem experimentado desde o início dos anos 2000, quando a soja chegou a Santarém, Pará. O relato de Beto — seu nome foi alterado para proteger sua segurança e confidencialidade — faz parte da pesquisa detalhada que conduzi na região entre 2019 e 2022. Sua
história condensa a experiência de milhares de outros trabalhadores rurais que foram forçados a deixar suas terras devido à expansão da soja — uma realidade que se repete em outras partes do Brasil.
Com base em 18 meses de trabalho de campo, desenvolvi o conceito de expulsão por sufocamento para descrever como a expansão das plantações de soja, impulsionada pelo uso de glifosato, tem transformado a vida das comunidades na Amazônia brasileira. O estudo argumenta que o uso de glifosato produz uma forma lenta de violência química que sufoca pessoas, ecossistemas e modos de vida. Essa violência força as comunidades ribeirinhas a partir e abre caminho para o avanço da soja, prejudicando também as populações indígenas e quilombolas.
Um rastro de destruição
Produtor de mamão, cupuaçu, graviola, maracujá e mandioca, Beto se orgulhava de não usar agroquímicos. Mas agora teme não poder mais garantir uma colheita orgânica. “O vento leva o glifosato”, diz, com melancolia. Outros agricultores relataram que, com a aplicação de veneno nos campos de monocultura, também foram forçados a usá-lo em suas próprias culturas — caso contrário, simplesmente não cresceriam. “O objetivo deles hoje é avançar”, alerta Beto, referindo-se à dinâmica que permite aos produtores de soja ganhar terreno sobre a floresta, ocupando áreas já desmatadas e comunidades tradicionais. Tendo vivido por 25 anos em comunidades ao longo da rodovia Curuá-Una, Beto se viu cercado pela soja. À medida que as plantações avançavam, o cerco crescia e, eventualmente, ele não tinha mais para onde ir para continuar seu trabalho agrícola. Sitiado por uma propriedade maior que a sua e com sua renda afetada pela aplicação constante de veneno, a única opção que parecia viável era vender sua terra aos produtores de soja e se mudar para a cidade. Para ele, os remanescentes de floresta e as casas das comunidades à beira da estrada pareciam uma farsa, escondendo a vasta extensão dos campos de soja atrás e o violento processo de transformação territorial que testemunhou.
A rápida expansão dos campos de soja sobre a floresta na região do Baixo Tapajós (Pará) tem levado à devastação de vastas áreas e ao deslocamento forçado de comunidades tradicionais. Na região do Baixo Tapajós, abundam os testemunhos de pessoas que dizem não conseguir respirar durante a pulverização de herbicidas, que não respeita dias nem horários. Essas situações muitas vezes forçam os moradores a se trancarem em casa. Em alguns casos, a sensação de asfixia é tão intensa que desencadeia ataques de ansiedade. Mesmo as escolas não estão imunes a esses impactos, que afetam as crianças mesmo durante as aulas, como testemunhado na Escola Municipal Vitalina Motta, no município de Belterra.
Embora tais relatos sejam numerosos e os sintomas recorrentes, um dos principais pontos debatidos na literatura especializada diz respeito à dificuldade de provar uma ligação causal entre a exposição a um agente químico específico e os danos infligidos a um corpo ou comunidade específicos. A exposição frequente e de longo prazo, combinada com a rápida dispersão do glifosato pelo ar, solo e fontes de água — bem como sua interação com outros fatores que causam doenças — torna seus efeitos difíceis de rastrear. Em suma, os pesticidas são evasivos. Aproveitando essa correlação evasiva, poderosos atores locais alinhados com o agronegócio argumentam que não há evidências de que o herbicida prejudique a saúde humana quando usado na chamada dose correta. Além disso, há uma subnotificação intencional de casos, pois esses grupos políticos pressionam as equipes de saúde a não registrar envenenamentos agudos por pesticidas.
Afastando-se da dificuldade de provar os efeitos e da subnotificação oficial, a pesquisa buscou maneiras alternativas de delinear essa relação. Em busca de evidências, o estudo entrevistou profissionais médicos que trabalham na região, cujas contribuições ajudaram a conectar as manifestações clínicas observadas ao contexto ambiental e social das comunidades afetadas. O trabalho também incorporou estudos da área médica que, embora ainda limitados, ampliam o reconhecimento científico dessa realidade. Juntamente com as narrativas das comunidades, esses dados sustentam o conceito de expulsão por sufocamento e ajudam a elucidar os danos multidimensionais envolvidos na tomada agroindustrial da floresta.
A Criação de Vazios Demográficos
Ao reconhecer que o vazio no qual a soja se expande é ele próprio produzido por sufocamento, torna-se necessário situar esses processos dentro da trajetória histórica e política mais ampla da Amazônia brasileira. Este estudo possibilita conectar as transformações recentes no Baixo Tapajós à longa história da ocupação amazônica. Uma trajetória que foi marcada por projetos de modernização militar implementados em uma escala sem precedentes a partir do final da década de 1960. Essas iniciativas, promovidas pela ditadura militar brasileira (1964–1985), foram fundadas na premissa de que a floresta era um vasto vazio demográfico aguardando uso produtivo. Mas a noção de uma “Amazônia vazia” surgiu antes da ditadura militar e, ao longo do século XX, guiou as políticas de ocupação e controle sobre os territórios indígenas. Desde 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o Estado brasileiro tem buscado integrar os povos indígenas ao projeto nacional sob um discurso de pacificação que disfarça a violência da expansão territorial. De iniciativas como a Marcha para o Oeste (1930–45) e o Plano Nacional de Integração (1970), este último durante a ditadura, ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC, 2007) e à usina de Belo Monte (2016) sob a democracia, governos sucessivos consolidaram um modelo desenvolvimentista sustentado por grandes projetos de infraestrutura, desmatamento e expulsões. O uso intensivo de pesticidas no Baixo Tapajós pode ser visto como um dos capítulos mais recentes dessa contra-história do Brasil, conforme proposto pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que sugere que a história do país deve ser entendida como um longo processo de expulsão e violência voltado para a expropriação das terras indígenas. Nesse sentido, os pesticidas operam como uma tecnologia política que materializa o imaginário colonial de uma “Amazônia vazia” a ser transformada. A expulsão por sufocamento no Baixo Tapajós lança, portanto, luz sobre uma realidade histórica persistente: a floresta amazônica nunca esteve vazia, mas, sim, certos atores produziram ativamente o vazio em partes da floresta por meio de práticas agroindustriais que dependem precisamente desse espaço vazio para avançar.
📝 Sobre este conteúdo
Esta matéria foi adaptada e reescrita pela equipe editorial do TudoAquiUSA
com base em reportagem publicada em
Theconversation
. O texto foi modificado para melhor atender nosso público, mantendo a precisão
factual.
Veja o artigo original aqui.
0 Comentários
Entre para comentar
Use sua conta Google para participar da discussão.
Política de Privacidade
Carregando comentários...
Escolha seus interesses
Receba notificações personalizadas