Getúlio Vargas, o presidente mais longevo da República brasileira, é retratado como uma figura complexa e pragmática pelo jornalista e escritor Lira Neto, autor da biografia "Getúlio". Ditador e precursor de direitos trabalhistas, modernizador e centralizador, com ligações com os Estados Unidos e o Eixo na Segunda Guerra Mundial, são alguns dos aspectos abordados pelo autor ao analisar a trajetória de um dos principais políticos do país. Na obra de três volumes, Neto argumenta que Vargas não pode ser categorizado como de direita ou esquerda. "Não era esquerdista nem direitista. Era getulista", afirma. Lira Neto identifica semelhanças entre o Estado Novo, a ditadura militar de 1964 a 1985 e a tentativa de golpe de 2022, citando a postura dos militares como tutores da disputa política em tempos de intensa polarização. Ele também aponta paralelos entre Getúlio e Lula (PT), indo além dos longos períodos de ambos no Executivo federal. "Ambos possuem semelhanças pela capacidade de mobilizar grandes massas. Na minha opinião, os principais nomes da história política republicana brasileira são Getúlio Vargas e Lula." Após 80 anos do fim da Era Vargas, como podemos analisar a relação entre Getúlio, o "pai dos pobres", e Getúlio, o ditador? A memória de Getúlio é um campo de batalha. Muitos o veem como um líder com grande sensibilidade social, criador da legislação trabalhista, modernizador do Estado, impulsionador da industrialização e promotor do
desenvolvimento econômico. Outros o enxergam como um ditador autoritário, que reprimiu a oposição, prendeu adversários, compactuou com a tortura, censurou a imprensa e se manteve no poder por meio de uma poderosa máquina de propaganda pessoal, com o Departamento de Imprensa e Propaganda. Tentar entendê-lo de forma dicotômica, como anjo ou demônio, é um erro. Getúlio foi ambos. Sua figura histórica é fascinante por isso, despertando paixões extremas, amores e ódios em igual medida. Para Lira Neto, Getúlio não pode ser enquadrado em nenhum espectro político, pois estava além das ideologias, sendo contraditório e pragmático, capaz de adotar medidas que ora o aproximavam de um lado, ora do outro. "Não era esquerdista nem direitista. Era getulista." Chegou ao período constitucional sendo visto pelos militares como um comunista, apesar de ter dado um golpe com características fascistas. Há semelhanças entre o Estado Novo, a ditadura militar e a tentativa de golpe sob Bolsonaro? É arriscado comparar realidades históricas distintas sem considerar as particularidades e o contexto de cada época, sob o risco de anacronismo. Contudo, nos três períodos, houve a interferência das Forças Armadas na política nacional. Os militares, antes menos profissionais, passaram a se considerar árbitros da nação desde a Guerra do Paraguai, acusando os civis de incompetência e definindo a política como algo sujo e corrupto. Com base nisso, em diversos momentos da história republicana, impuseram ou buscaram impor o uso da força como forma de "salvar a pátria". Getúlio teve uma relação de tensão com os militares, ora se beneficiando, ora disputando com eles. De qualquer forma, o então presidente fortaleceu as Forças Armadas, que posteriormente o pressionaram a deixar o poder em 1945. A relação de Getúlio com os militares sempre foi ambígua. Ele chegou ao poder em 1930 por meio de um movimento que uniu a força militar e o apoio civil das oligarquias dissidentes da Primeira República. Inicialmente, no Governo Provisório, até 1937, tentou administrar essa dicotomia. No Estado Novo, contou com amplo apoio das Forças Armadas, equipando os quartéis e garantindo a manutenção de um governo centralizador. Contudo, ao final da Segunda Guerra, os mesmos militares que o apoiaram foram responsáveis por sua queda, muito também devido à mudança de cenário mundial com a derrota do Eixo e a pressão democrática sobre o regime. Quando retornou ao poder, em 1951, o Exército estava dividido entre a ala nacionalista e a ala dita democrática, o que o fez perder o apoio da caserna. Vargas também teve uma política externa ambígua, mantendo relações com o Eixo e os Estados Unidos. O golpe de 1937 teve inspiração fascista. Em 1930, quando questionado por um jornalista sobre sua inspiração política, Getúlio afirmou ser "a renovação criadora do fascismo de Mussolini". No contexto da crise do capitalismo e das democracias liberais, em decorrência da Grande Depressão, os regimes de força pareciam ser a solução. A formação positivista de Getúlio, no Rio Grande do Sul, apontava para soluções ditatoriais. Além disso, na época, a Alemanha nazista era a principal parceira comercial do Brasil. Getúlio tentou se equilibrar em uma política de neutralidade, obtendo vantagens dos dois lados, até que o bloqueio britânico do Atlântico o forçou a buscar novas parcerias. Foi quando ele conseguiu negociar o apoio aos Aliados, em troca da viabilização da indústria siderúrgica nacional, financiada em parte pelos EUA. Sobre o Estado Novo e suas exceções, acadêmicos mencionam a falta de documentos ou fontes para analisar o período, que envolveu perseguição e tortura. Lira Neto discorda, afirmando que as fontes são abundantes e que há excelentes trabalhos sobre o Estado Novo. O problema é que a segunda ditadura, pós-1964, despertou mais interesse dos pesquisadores. Getúlio foi associado ao legado trabalhista, à CLT, à Justiça do Trabalho e à modernização do Estado. A legislação trabalhista, iniciada em 1931 e consolidada na CLT em 1943, modernizou a relação entre capital e trabalho no país. Embora com os sindicatos sob controle estatal, a CLT foi essencial para a conquista de direitos e para a organização da classe trabalhadora. De lá para cá, o mundo do trabalho mudou, mas querer destruir os direitos dos trabalhadores é uma perversidade. Satanizar a CLT e promover a precarização e a uberização da economia como solução, em nome do empreendedorismo, é hipocrisia. Lula se compara a Getúlio Vargas, se dizendo modernizador do Estado brasileiro e com um longo período no poder. Lira Neto vê semelhanças entre os dois, não apenas pela longevidade, mas pela capacidade de mobilizar grandes massas. O próprio Lula já "imitou" Getúlio, posando com a mão suja de petróleo, repetindo o gesto de Vargas na criação da Petrobras. Para Lira Neto, Getúlio Vargas e Lula são os principais nomes da história política republicana brasileira. Lira Neto critica a desqualificação dos militares que apoiaram Jair Bolsonaro, comparando-os com a intelectualidade de militares como Golbery do Couto e Silva e Castello Branco. Ele defende uma reforma nos currículos das escolas militares, aprimorando a formação das Forças Armadas. Lira Neto, 61 anos, é escritor e jornalista, formado em comunicação social pela UFC e mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP. Publicou mais de 20 livros, incluindo a biografia "Getúlio", e é quatro vezes ganhador do Prêmio Jabuti. Lecionou na Faculdade Middlebury, nos Estados Unidos, e foi colunista da Folha.
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com base em reportagem publicada em
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