Quando a fadiga se torna a norma, transcende a esfera individual, transformando-se em um princípio político e civilizacional que restringe nossa liberdade e nosso destino. É essa forma sutil de poder – a maneira como o esgotamento se converte em ferramenta de controle e obstáculo à vitalidade – que a autora Ana Pina denomina "economia do cansaço". O indivíduo contemporâneo se encontra frequentemente exausto em diversos aspectos, o que o torna um sujeito vulnerável e obediente. Apesar de raramente admitir em público, por receio de ser visto como inadequado, desmotivado ou fraco, os sinais de desarmonia e exaustão são evidentes. A sociedade aprendeu a se punir por pequenos deslizes, como perder o despertador ou esquecer de responder a um e-mail fora do horário comercial. Não seria óbvio que grande parte de nosso cansaço se origina da crescente carga de solicitações – mensagens, prazos, estímulos, notícias e expectativas – que nos são impostas diariamente? Nunca estivemos tão expostos a uma enxurrada de responsabilidades, viagens, ruído e gerenciamento constante de tarefas por meio de aplicativos em nossos dispositivos móveis. A tendência natural, no entanto, é romantizar essa condição, transformando o excesso em prova de valor. A capacidade de dar conta de tudo, estar sempre disponível, tornou-se sinônimo de força e mérito. Alimenta-se o mito de indivíduos impecáveis, quase super-heróis, que demonstram que, quanto mais há para fazer, mais
se faz, e que tudo é uma questão de organização, omitindo os segredos que mantêm tudo em ordem e os sintomas de cansaço em suas vidas privadas. Essa ilusão, porém, tem um alto custo, pois propaga a ideia de que é possível, viável e desejável manter esse ritmo como padrão para a sociedade. Isso nos prejudica individualmente, afastando-nos de momentos essenciais – o tempo de ócio, o silêncio, o convívio, o cuidado familiar, o sono, o deslumbramento – e nos enfraquece como sociedade, rompendo nossa ligação com aquilo que dá sentido e ritmo à vida. Destacam-se duas consequências concretas dessa economia do cansaço: a incapacidade de desenvolver senso crítico e de participar da vida pública, e a perda de motivação e força vital para gerar descendência. Em um mundo que confunde movimento com progresso e pressa com vitalidade, vale a pena relembrar a lição da obra "Walden ou a Vida nos Bosques": "Quando somos calmos e sábios, percebemos que só as coisas grandes e dignas têm existência permanente e absoluta, que os pequenos medos e os pequenos prazeres não passam de sombra da realidade, o que é sempre estimulante e sublime. Por fecharem os olhos e dormirem, por consentirem ser enganados pelas aparências, os homens em toda a parte estabelecem e confinam as suas vidas diárias de rotina e hábito em cima de fundações puramente ilusórias." Existe uma forma de rotina laboral que cansa e, acima de tudo, desmoraliza. É o trabalho que ocupa o corpo e o espírito com tarefas vazias, mesquinhas, sem resultados tangíveis, e que pouco ou nada acrescentam à vida real. O ser humano precisa de tempo para não se embrutecer, para recuperar o gosto pela beleza, pela convivência e pela reflexão. Esse tempo, essencial ao equilíbrio do espírito e à convivência social saudável, foi sobrecarregado por obrigações e estímulos incessantes. Atualmente, o poder não se impõe pela força, mas mantendo-nos constantemente ocupados, estimulados, distraídos e, aparentemente, produtivos – para que nunca questionemos o significado das coisas. Trabalhamos para manter em funcionamento uma engrenagem que nos consome e, no fim, resta-nos apenas o consolo do entretenimento fácil que chega até nós como ração que é atirada num curral, sem sabor, sem substância – um torpor fabricado que mantém o homem hipnotizado, dócil e distraído da própria condição e das causas coletivas que o transcendem. Consequentemente, esse cansaço leva à baixa vitalidade para gerar vida: o esgotamento e a desorganização da vida real estão a tornar a reprodução indesejável ou impossível, ao mesmo tempo que cada pessoa vive obcecada em ser independente, nómada, em progredir na carreira e em encontrar a juventude eterna. A economia do cansaço não corrói apenas o corpo e a mente – corrói também a família e o desejo de continuidade. As sociedades ocidentais, dominadas pelo ritmo da produtividade e pelo culto da autonomia individual, perderam o impulso de gerar vida. O declínio da natalidade, longe de ser apenas um problema económico, revela uma fadiga civilizacional: o esgotamento do Eros, da confiança no futuro e do sentido de pertença. Especificamente quanto às mulheres, o cansaço surge da duplicação das exigências, no mercado de trabalho e na vida doméstica. Ao tentar conciliar a lógica produtiva com os ritmos biológicos, acaba por se afastar do ritmo orgânico e relacional que outrora lhe permitia gerar, cuidar e transmitir. A maternidade torna-se um luxo e o repouso um pecado. É neste cenário de exaustão e desenraizamento que a promessa dos úteros artificiais começa a apresentar-se como avanço tecnológico, quando, na verdade, anuncia a consumação de uma perigosa distopia: a eliminação da necessidade de encontro e cooperação entre homem e mulher, a ruptura com a natureza, a transformação da reprodução em mero acto produtivista, a aversão à incerteza e ao sacrifício e a definitiva cisão entre a mulher e a sua potência natural para gerar vida. Todos esses sinais de esgotamento nos convidam a repensar formas criativas de estimular uma nova ética do tempo. Formas criativas que escapem, tanto ao discurso desgastado da "conciliação" entre trabalho e vida, que reduz tudo à produtividade e à burocracia, como à narrativa da igualdade de género, que semeia rivalidade na família. Repensar a maneira como organizamos e protegemos o tempo pode ser o primeiro passo para restaurar vitalidade à vida pública e privada. Isso implica coragem para desacelerar, combater a disponibilidade permanente, reduzir e flexibilizar horários de trabalho, restringir o uso digital em nossas vidas, nomeadamente nas escolas, e recriar espaços de convivência fora do ambiente produtivo. Desacelerar e “desligar” é um ato de legítima desobediência contra a alienação. É a tentativa de reconciliar homens e mulheres com os ritmos da natureza.
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com base em reportagem publicada em
Jornaleconomico
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