São Paulo - Aos 76 anos, o jornalista Sérgio Gomes carrega em sua memória, alma e corpo as marcas do sofrimento e do horror vividos nas dependências do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), a máquina de violência instalada nos quartéis durante o regime de exceção. Era a primavera de 1975. Naquele período, outro jornalista, Vladimir Herzog, conhecido como Vlado, foi assassinado em 25 de outubro, há meio século.
"Vlado foi torturado durante toda a manhã. Por volta da hora do almoço, um silêncio se instalou, seguido por confusão e correria. Percebemos que algo estranho havia acontecido. Eles haviam matado Vlado", relata Gomes. No próximo dia 25, quando o assassinato que chocou o país completa 50 anos, o Instituto Vladimir Herzog promoverá um ato inter-religioso na catedral da Sé para relembrar a resistência do jornalista — o templo foi palco da missa de sétimo dia de Vlado, que atraiu uma multidão de oito mil jornalistas e populares indignados, dispostos a enfrentar a repressão dos agentes do Dops. Haverá também uma reconstituição histórica reunindo lideranças religiosas, familiares, autoridades e artistas.
Sérgio foi preso cerca de 20 dias antes de Vlado. Tinha entre 25 e 26 anos. Filiado e integrante do comitê universitário do Partido Comunista Brasileiro, foi sequestrado na Operação Jacarta, no Largo do Machado, no Rio, junto com o presidente da Juventude do MDB, Waldir Quadros
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"Waldir e eu fomos ao Rio no ônibus da meia-noite. Íamos entregar dinheiro a João Guilherme (João Guilherme Vargas Neto, estudante de Matemática na Universidade Federal do Rio). Em 1964, com o golpe militar, ele entrou na clandestinidade até a anistia, em 1979, permanecendo 15 anos nessa condição", recorda Gomes.
"Ele era um dirigente político ligado ao PCB. O dinheiro que arrecadávamos entre os colegas em São Paulo servia para ajudar João Guilherme a se manter na clandestinidade", continua o jornalista. "Nosso plano era encontrar João logo cedo na Igreja, na missa das 7 horas. Ele vivia isolado em um pequeno apartamento até conseguir um passaporte para exilar-se. O dinheiro o sustentaria por algum tempo. Waldir e eu também tínhamos dois compromissos à tarde. Waldir ajustaria detalhes e contatos para um seminário sobre o acordo nuclear Brasil-Alemanha. Eu falaria com Paulinho da Viola e Sérgio Cabral, o pai, sobre um clube do choro em São Paulo. Na época, havia vários grupos, mas o gênero musical era marginalizado."
João Guilherme, hoje com 82 anos, era "um dos intelectuais mais importantes do Brasil", segundo o jornalista. "Era nosso assistente político, como se dizia, na estrutura do PCB. Cada núcleo tinha um assistente político. Ele organizou a base dos jornalistas. O que era proibido era combinar, multiplicar a capacidade de trabalho, e era isso que estava proibido. Levávamos o dinheiro para João Guilherme em um envelope. Fiz isso várias vezes. Mensalmente, nos encontrávamos com ele na igreja do Largo do Machado. Não tínhamos ideia de onde era o apartamento em que ele morava", conta.
Cinquenta anos depois, um detalhe ainda o perturba. "Por que tanto desespero (do governo militar) para nos eliminar? O PCB estava na clandestinidade por decisão deles." Sérgio Gomes relata que o DOI-Codi iniciou uma ofensiva violenta contra o partido. "As prisões começaram ali, desmantelando nossa base, a célula junto à Polícia Militar, o coronel Vicente Sylvestre [preso em junho de 1975]. Uma avaliação de João Guilherme previa que sofreríamos o revide da vitória que conquistamos em novembro de 74 com a votação expressiva no MDB. Foi uma grande vitória nas urnas, com 16 senadores e mais de dois terços dos deputados na Assembleia Legislativa de São Paulo, superando nossas expectativas."
"Na semana anterior à minha ida ao Rio com Waldir, eles [a repressão] prenderam muitos que viviam na clandestinidade, cerca de 15 quadros do partido. Um deles era o Bernardino, que tinha uma banca de jornal no Ipiranga. Barbarizaram com ele, querendo saber onde estava o 'Inácio'? 'Inácio' era o codinome de João Guilherme. O velhinho sabia que eu levava mensalmente o dinheiro para João. Estavam espancando o velhinho, mas ele resistia. Então, pegaram a mulher dele. Ele cedeu e disse: 'Não sei, mas sei quem sabe onde está o João Guilherme, é um repórter, ele vai ao Rio uma vez por mês'. O repórter era eu."
"Eles nos seguiam e filmavam com uma Super 8, inclusive em um bar em Cotia [Grande São Paulo], onde almoçávamos. Waldir e eu sempre tomávamos medidas de segurança. Na rodoviária antiga do Centro de São Paulo, entramos no ônibus separados, sem saber o assento um do outro. Deixei meu carro longe da rodoviária. Viajamos a noite toda, chegando no Rio por volta das 5h30, 6h. Pegamos um táxi até o Largo do Machado. Ao sair da rodoviária, aquele congestionamento estranho, o táxi parte e vejo na calçada um sujeito correndo, segurando algo na altura do estômago, possivelmente uma arma. Ele entra em um fusca. Eram três fuscas, um atrás do outro. Achei estranho e acompanhei pelo retrovisor do táxi. Era o comando do DOI de São Paulo. Eles seguiram nosso ônibus de São Paulo até o Rio. Já no táxi no Rio, percebendo que nos perseguiam, pedi ao motorista para parar no primeiro bar. Descartaríamos qualquer papel comprometedor. Paramos no Flamengo. Os agentes se surpreenderam e tiveram que nos seguir para não se revelarem. Tomamos café e saímos por uma feira livre. Do outro lado, pegamos outro táxi, mas fomos imediatamente cercados pelas três viaturas do DOI. Os agentes disseram ser do Esquadrão da Morte. Waldir foi colocado em um carro, eu em outro. Começaram ali mesmo, com socos e cigarros acesos, e nos levaram para o DOI-Codi do Rio, no quartel da Polícia do Exército."
"Passamos a manhã ali, nus, exigiram nome completo e endereço de parentes para 'devolver o corpo'. Queriam saber do 'Inácio'. Dissemos que não sabíamos. Fomos pendurados no pau de arara e forçados a ingerir quase meio litro de água com creolina, enquanto éramos espancados com um pedaço de madeira quebra-costelas. Ali tive a sensação de ter feito o que era possível pelo meu país. Eu e Waldir tínhamos um pacto de silêncio. Isso está no meu depoimento na Comissão da Verdade. Na volta a São Paulo, simularam nosso fuzilamento perto de um lixão. Eu em um carro, Waldir em outro."
"Chegamos em São Paulo, fomos levados ao Dops. Trocaram as placas dos carros, fomos para a Rua Tutóia, no DOI-Codi. Só saí de lá após a morte de Vlado."
"Soube da morte de Vlado por Davi Rumel, estudante de Medicina, filho do diretor da Faculdade de Odontologia da USP. 'Apagaram o Vlado', ele disse. Vlado foi espancado, levou choques e foi asfixiado. Eu passei por essa experiência. Não quero que sintam pena de mim. Eu sabia o que podia acontecer. Participei conscientemente da luta contra a ditadura desde 1968. Depois, em 1975, eles [os generais] queriam abrir [a abertura de Geisel, lenta e gradual], mas antes queriam nos matar." Em seguida, Sérgio foi transferido para a Rua Tutóia, a sede do destacamento. Era 5 de outubro. Meio século depois, ele recorda o 'inferno' que conheceu. "Fomos vítimas de uma política deliberada de eliminação física." Aponta seu algoz. "Eu fui espancado pelo capitão Ramiro. Esse cara tinha uma técnica especial de bater. Os gritos no DOI eram uma coisa natural, eram ouvidos pela vizinhança. No mercado imobiliário, os apartamentos no bairro eram desvalorizados, mais baratos, por causa dos gritos de horror que se ouviam." Ramiro poderia ser um codinome — prática comum nos porões —, para dificultar a identificação do torturador. "Uma equipe era comandada pelo capitão Ramiro. Eram três equipes no DOI-Codi. Elas se revezavam em plantões de 24 horas, com 48 de folga", relata Sérgio Gomes.
Em 1992, a pedido da Unidade, o jornal do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, Sérgio reconstituiu cenas da desgraça que passou em depoimento ao jornalista e professor José Carlos Rocha. "O capitão Ramiro tinha um estilo diferente das outras duas equipes. Andava sempre com um sarrafo e sabia exatamente onde bater, nos cotovelos, nos joelhos, nos tornozelos, nas articulações. Conhecia a anatomia humana e desmontava uma pessoa com poucos golpes e sem barulho. Tinha prazer em amarrar as pessoas na 'cadeira do dragão', uma espécie de 'troninho' de metal, molhado, onde braços e pernas eram imobilizados. Amarrava-se um fio elétrico no pênis, outro na orelha e, com uma maquininha, um dínamo, chamado de 'pimentinha', aplicavam choques. Não é um choque que queima, não sei dizer a amperagem ou voltagem. Depois de encapuzar a pessoa, o capitão Ramiro jogava amoníaco sobre a parte frontal do capuz e apertava na parte abaixo do queixo, de forma que o capuz ficasse bem colado no rosto."
"Ramiro dava porradas, gritos, choques elétricos e jogava amoníaco no capuz. A gente respirava esse amoníaco. À medida que o choque elétrico é dado, se você estiver expirando, não consegue inspirar, e se estiver inspirando, não consegue expirar. Então, como os choques são dados aos trancos, a respiração fica descontrolada e o amoníaco entra pelas narinas, invadindo o cérebro como uma batalha de espadas, cortando o cérebro de todo jeito — e você ali imobilizado, levando choques, porradas, gritos. Tudo isso cria uma situação surreal, você não tem mais noção se é com você que está acontecendo, começa a ficar confuso, sem saída, amarrado."
No depoimento ao professor José Carlos Rocha, publicado pela Unidade, Sérgio lembra que "foi submetido a torturas muitas vezes e percebeu que a qualquer momento morreria, a qualquer momento podia ter um derrame, um colapso, a coisa ia se desagregar".
"Você vai ficando completamente fora de si. É algo que precisaria ser analisado por neurologistas, para entender o que acontece, porque soube depois que, em situações-limite, de dores muito agudas e aflições intensas, o cérebro libera uma descarga e mata o indivíduo para salvá-lo do enlouquecimento. Se a pessoa sofre um acidente de carro e tem esmagamento da coluna, por exemplo, que dizem ser a dor mais terrível, a pessoa morre de dor, morre para fugir dessa dor, que é tão lancinante que a pessoa vai enlouquecer. Antes de enlouquecer, a pessoa se salva morrendo."
"Eu senti isso. Tanto que, em uma dessas ocasiões, após passar por sessões do capitão Ramiro, me desamarraram, tiraram o capuz, me deixaram lá, vomitei bílis, vomitei algo como placenta, estava todo erodido. Lembro que abriram a porta do lugar, trouxeram uma pessoa, que não sei quem é, que tinha sido presa recentemente, e disseram: 'Olha, é melhor colaborar, senão vai acontecer com você o mesmo que está acontecendo com esse cara aí, que já está no fim.'"
"Isso me deixou com uma mistura de medo e humilhação, porque eu estava sendo usado como exemplo do estrago que se pode fazer com um ser humano."
"Depois de vários dias, emagreci muito, estava arrebentado, minha condição era usada para amedrontar os outros. Um dia, vi sobre um banquinho um vidro de amoníaco, o vidro que o capitão Ramiro usava. Fiquei olhando e resolvi me suicidar, porque a situação parecia insuportável, eu ia enlouquecer. Peguei o vidro e tentei tirar a tampa de plástico, esperando que o amoníaco fosse suficiente para me matar. Estava nessa tentativa desesperada quando o capitão Ramiro e seu grupo entraram. Tiraram o vidro das minhas mãos, me amarraram na cadeira do dragão e começou outra sessão, coisa maluca."
Vladimir Herzog, de Osijek (antiga Iugoslávia, hoje Croácia), nascido em 27 de junho de 1937, filho de Zigmund Herzog e Zora Wolner, jornalista, professor, cineasta e carismático, chegou à Rua Tutóia, 921, para depor. Saiu de lá sem vida. Era 25 de outubro de 1975. Os militares simularam um suicídio — o profissional da TV Cultura teria se enforcado com um cinto, segundo alegaram. Logo, a farsa foi revelada.
"No dia 25 de outubro, eu já tinha passado por essa longa sequência de barbáries", conta Sérgio. "Lá naquela cela solitária, eu podia ouvir gritos 'quem são os jornalistas?'. Não tinha ideia que era o Vlado. Pelo tipo de luta, pelo tipo de grito, pelo tipo de porrada, sabia que estavam fazendo com alguém o que eu tinha passado e sabia o que podia acontecer."
"Algum tempo depois, um grande silêncio. E, logo, um remanejamento, deslocam-se pessoas de um lado para outro dentro daquelas instalações na delegacia, desse ambiente onde eles tinham gente presa. Mais tarde, fui informado por Davi que haviam apagado o Vlado."
Sérgio narra que ficou preso em uma cela igual à que Vlado ocupou. "Fiquei preso em praticamente todas as celas ali. Não há possibilidade de suicídio do Vlado. Ninguém ficava com cinto. Depois da morte do Vlado, eles remanejam as pessoas dentro do DOI-Codi, para deslocar o corpo, montar a farsa, bater as fotografias. A cela onde tiraram a foto do Vlado era uma das celas que estava ocupada por presos. Vlado jamais esteve preso nessas salas que correspondiam às celas da delegacia. Ele foi torturado lá dentro, na sala especial onde ficava a cadeira do dragão. As pessoas não eram torturadas nas celas, eram torturadas lá dentro. Vlado nunca esteve no local onde dizem que ele se suicidou. Ele estava sendo torturado da maneira que descrevi de forma simples, e acredito que ele morreu disso, de derrame, de colapso, pois foi uma longa sessão de tortura. Não sei se a religião judaica permite a exumação do corpo, porque, se fizerem, certamente encontrarão traços de amoníaco." Ele afirma que Vlado não foi assassinado durante a madrugada. "Também não vi ninguém ser torturado ou afogado em água com enxofre. Isso não era o que se fazia ali. Afirmo: Vlado não se suicidou. Vlado foi assassinado. Na manhã de 25 de outubro, foi submetido à tortura, amarrado à cadeira do dragão, sob choques elétricos, possivelmente com um fio no sexo e outro na orelha, levando golpes nas articulações. E asfixiado com amoníaco derramado sobre o capuz que impedia os presos de ver o rosto de seus torturadores."
Após o DOI-Codi, Sérgio passou um mês no Dops e, depois, na 6.ª delegacia (Cambuci). Em seguida, foi para o presídio do Hipódromo, Zona Leste paulista. "Era uma detenção oficial, com uma ala para presos políticos. Não havia mais tortura, não havia mais nada disso ali." Tempo depois, foi chamado para depor em audiência pública na Comissão Nacional da Verdade. "Foi um absurdo o que passei em meu depoimento. Chegou o capitão Ubirajara, torturador do DOI-Codi. Houve inquietação. O capitão ficou me ouvindo. Colocaram o cara do DOI-Codi para assistir meu depoimento. Ele com o advogado dele. Quando me virei para o capitão Ubirajara, fui vaiado."
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